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Artigo Especial | “A cigana analfabeta lendo a mão de Paulo Freire”

Artigo Especial | “A cigana analfabeta lendo a mão de Paulo Freire”

“A cigana analfabeta lendo a mão de Paulo Freire.” (Chico César)

No texto “Educação e Sociologia” (DURKHEIM, 2012), publicado cinco anos após sua morte, Èmile Durkheim (1858-1917) caracteriza a Educação como um fato social, pois dotado de generalidade, exterioridade e coercitividade, e que pode ser definida como ação intencional promovida pelas gerações mais velhas sobre as mais novas, visando criar condições melhores, para garantir a continuidade da coletividade social. E daí a importância de uma educação pública e laica, comprometida com os valores de sua sociedade. Neste nosso mundo social atual, a Educação formal se processa em instituições sociais como escolas, faculdades e universidades. Envolve tanto a transferência organizada e sistemática de informações, conhecimentos e saberes quanto às múltiplas aprendizagens/vivências, que são as situações e intercorrências conflituosas que constituem a socialização promovida pelas instituições educativas. A Educação, em sentido amplo, pode e deve criar as necessárias para garantir a continuidade do tecido social.

O mês de maio do ano de 2018, no auge das polarizações políticas nacionais que culminaram com a eleição de Jair M. Bolsonaro, o movimento estudantil da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, indignado com o aumento abusivo e injustificado do valor da alimentação no Restaurante Universitário, o RU, adotou como recurso de pressão política para forçar a gestão ao diálogo, a ocupação da reitoria. Sendo a ocupação um recurso que tem legitimidade política em uma democracia e notadamente por ocorrer em um ambiente de formação, pesquisa e ação política e cidadã, de uma universidade pública. Contudo, a resposta institucional dada pela reitoria da UFSCar à época dos fatos, optou por calar as vozes e emparedar os gestos do movimento estudantil. E nessa perspectiva, foi adotado pela reitoria um conjunto de ações que além de silenciar o diálogo, utilizou como recurso a perseguição e a punição ao movimento estudantil da UFSCar, selecionando sete estudantes que eram conhecidos por sua atuação e comprometimento político, muito embora alguns nem sequer estivessem na ocupação. Ação esta que, em nossa opinião, abandonou a tradicional postura democrática e dialogável da UFSCar.

Considerando que as gerações mais velhas têm um determinante compromisso com o tecido social, que é o de auxiliar e instrumentalizar as gerações mais jovens para que estas, por meio do conjunto de suas ações, relações e interações, garantam a continuidade do corpo social no tempo e no espaço, entendemos que pela decisão antidemocrática e violenta, a reitoria da UFSCar errou duas vezes: não soube (i) ensinar, tanto quanto não soube (ii) aprender, pois optou pela utilização de medidas autoritárias, promovendo uma desnecessária agressão ao movimento estudantil.

No ensinar, pois a somatória das ações da reitoria entregou como lição ao coletivo de estudantes da UFSCar do passado, do presente e do futuro, a negação do diálogo, do entendimento e democracia. Inclusive, respeitados os devidos contornos, a reitoria agiu de forma muito semelhante ao que acontecia nas universidades ao longo do período da ditadura civil-militar entre os anos de 1964-1985. No aprender, dado que a pouquíssima inteligência política das decisões da reitoria não lhe permitiu viver a experiência de uma sala de aula reversa, em que discentes ensinam docentes.

Diante da ocupação, a Universidade de pronto adentrou em seu papel de natureza jurisdicional, instaurando sindicância administrativa. Sim pois um Tribunal formado por professores e funcionários passou a inquirir denunciados e testemunhas, buscando esclarecer o ocorrido para depois “sentenciar” – declarar qual a leitura “da verdade” dos fatos alcançada e apenar aqueles que cometeram excessos, segundo se apurou, nos termos do procedimento administrativo. Por tal via, trilhou o acertado caminho vez que o bem em questão atingido não guarda um alto grau de indisponibilidade, tal como a vida e a integridade física. Nos exatos moldes da ação promovida pela Ufscar, o bem jurídico afetado pela ação dos universitários foi tão somente o bem material traduzido no valor dos dias de trabalho não cumpridos pelos funcionários.

Não há dúvida que direitos essenciais como liberdade de expressão, de protesto, foram conquistas alcançadas em grande parte por ação de nossos intelectuais e estudantes erigidas dentro das universidades públicas, que não se dobraram às determinações de rebaixamento humano, disponibilizando suas próprias vidas contra cenários ditatoriais, nos anos de chumbo e mais recentemente.

A autorização pela autoridade máxima da UFSCar da entrada de forças armadas para tratar diretamente com alunos, foi uma manobra que põe em jogo todas as conquistas amealhadas até aqui no campo subjetivo de poder. E mais – ultrapassado o calor dos fatos, após apuração e apenamento dos envolvidos via sindicância interna, buscar sanção via Judiciário, quando o bem em questão, autonomia da universidade, é maior do que o “hipoteticamente lesado”, corrobora na desfiguração social do corpo político da entidade. Estranhamente, neste mesmo espaço que agora se mostra inflexível, nasceu um grupo político forte que com zelo, por quase duas décadas, construiu narrativas que desaguaram na preservação de porção de bioma em extinção – Cerrado UFSCar. Lançando mão de instrumentos democráticos para efetivar a proteção da natureza, com a urgência e o rigor que nosso tempo exige, o grupo foi recebido por várias vezes no Centro de decisões da universidade, participação de várias reuniões de CONSUNI, mesmo após judicializar a questão diante da determinação para construção de estrada atravessando o espaço. Isto sem jamais qualquer dos integrantes ser, formalmente, punido por qualquer das gestões anteriores.

Destaca-se que nenhum vandalismo foi visto na ocupação e mais, o valor da refeição, que havia tido aumento de mais de 1000% foi diminuído, em prova da legitimidade da reivindicação estudantil, contudo, primeiramente a Reitoria e após, o Judiciário, entenderam que os alunos deveriam ser apenados. Em outros tempos, a rebeldia universitária contra o cerceamento arbitrário e hostil com supressão de direitos essenciais, custou a vida. A escolha da reitoria adentra o campo de supressão de direitos, contudo, agora, a começar de dentro e isto traduz muito a fragilidade de nossa democracia mas também indica onde está nossa força. Na mais completa tradução de rebeldia, grafada na não aceitação das decisões arbitrárias de poder.

E nisto direitos são preservados, morrem ou se renovam, como deve ser no dinamismo de uma sociedade saudável. E que cada ente social prime pelo poder alcançado o que lhe garante força política no cenário social.

“São sons de sins, são sons, pé quebrado, verso mudo, grito no hospital das gentes.”

 Sara Bononi

Advogada que atuou na defesa administrativa dos estudantes; militante pela construção da igualdade social, na defesa do meio ambiente; Conselheira da OAB São Paulo e USP. Texto com colaboração do Professor Ronaldo Martins Gomes, Doutor em Ciências Sociais. Ambos formados pela universidade pública.

 

Artigo publicado na edição de julho do Jornal ADUFSCar

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